09.07.2022
Do portal DIÁRIO DE PERNAMBUCO/OPINIÃO
Por Maurício Rands*
Tudo
é uma batalha pela narrativa. Acaba de sair a pesquisa A cara da
democracia (UFMG, UnB, Unicamp e Uerj). 20% dos entrevistados creem que a
Terra é plana; 36%, que há uma conspiração global da esquerda para
tomar o poder; 21%, que a cloroquina cura a Covid-19; 49%, que o
coronavírus foi criado pelo governo chinês; e 27%, que o homem nunca
pisou na Lua.
Como leciona o jurista pernambucano João Maurício Adeodato, em sua análise retórica realista, a narrativa dominante acaba virando realidade. Pelo menos para os que nela creem. Como os terraplanistas. Ou como os senadores que aprovaram, no dia 30 de junho p.p., a Proposta de Emenda Constitucional nº 01/2022. A “PEC do Estado de Emergência”. Ou “PEC dos Gastos”. Ou “PEC da Bondade”. Ou “PEC do Vale-tudo-eleitoral”. Ou “PEC
Kamikase”. Que sobre ela cada um tem a sua narrativa retórica
instrumental.
Os
fins sempre justificarão os meios? Correto o apoio aos 33 milhões que
passam fome. Mas a mudança da CF seria o único meio para isso? Não seria
possível destinar esses R$ 41 bilhões para pobres, idosos, taxistas e
caminhoneiros removendo verbas de outras rubricas menos nobres? Por que o
Senado e a Câmara não poderiam ter votado um outro texto alternativo à
PEC 01/2022 antes desse ano eleitoral? Por que não um projeto que
removesse créditos do orçamento secreto (R$ 19 bi), do fundo partidário
(R$ 1 bi), do fundo eleitoral (R$ 4,9 bi em 2022), do custeio dos
prédios suntuosos dos poderes em Brasília, ou dos muitos subsídios aos
andares de cima? Afinal, responsabilidade social não é incompatível com
responsabilidade fiscal. Aliás, a segunda é requisito para a
sustentabilidade da primeira. Para que as políticas públicas de apoio
aos vulneráveis sejam viáveis no médio e longo prazos, impõe-se que elas
não eliminem a própria capacidade do Estado de financiá-las. Que elas
não retroalimentem a inflação que sempre piora a vida dos mais pobres.
Os senadores não-bolsonaristas votaram na manobra do governo e do
Centrão com receio da narrativa de que, se a rejeitassem, ficariam
contra os pobres. Mas se votassem um outro substitutivo que indicasse de
onde viriam os recursos não estariam construindo uma outra narrativa?
Talvez mais consistente porque os benefícios teriam sustentabilidade e
não teriam data certa para terminar.
A guerra da Ucrânia foi o
pretexto. Uma emergência artificial, pois a guerra já dura quatro meses,
a fome não surgiu hoje e o decreto de calamidade pública já foi
suspenso pelo próprio governo. Objetivo eleitoreiro em desvio de
finalidade. A emergência elevada ao texto constitucional – ao ADCT -,
claro, pode suspender a aplicação da legislação infraconstitucional.
Nesse caso, a PEC 01/2022 excepciona a eficácia da Lei das Eleições
(9.504/97, art. 73 § 10º), da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC
101/2000), da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2022 (Lei 14.194/2021).
E se choca com a EC nº 95/2016 (a do teto de gastos), que acrescentara
os arts. 106 a 114 ao ADCT para criar um novo regime fiscal. A última é
norma de mesmo ranking. Mas, por ser anterior e mais geral, poderia ter
sua eficácia excepcionada por outra norma de igual hierarquia e mais
específica. A consequência é que a PEC 01/2022 somente seria
inconstitucional se contrariasse as cláusulas pétreas previstas no § 4º
do art. 60 da CF/88. Afinal, o poder de emendar a constituição é um
poder constituinte derivado. Por isso, não pode reformar as cláusulas
pétreas.
O governo, acusando desespero eleitoral, orientado
pelos profissionais do Centrão, imaginou dar um xeque na oposição. Se
eles defendem os 33% de pobres que hoje vagam com fome em nossas ruas,
não poderiam votar contra o aumento do Auxílio Brasil e do Vale Gás. Se
realmente se preocupam com a carestia e a inflação, não poderiam
rejeitar a redução do ICMS sobre os combustíveis. Nem o pix
caminhoneiro.
O custo do pacote de bondade, de R$ 41 bi, não é
problema para um governo que se elegeu com o apoio da Faria Lima
mediante a promessa de que o ultraliberal Paulo Guedes não cometeria as
pedaladas fiscais que derrubaram Dilma. Cometem uma pedalada de maiores
proporções. O governo que, em tese, tem a responsabilidade de bem
administrar o caixa e o equilíbrio fiscal, é quem patrocina mais uma
flexibilização do teto de gastos. E sem indicar fontes alternativas de
financiamento das novas despesas, como sugeriram, entre outros, José
Serra e Cristovam Buarque. A manobra do governo, um paliativo esperto e
eleitoreiro, dá um drible nas regras eleitorais que impedem bondades com
o dinheiro público às vésperas das eleições. Não encaminha soluções
duradouras. E tudo através de uma emenda constitucional de duvidosa
constitucionalidade.
*Maurício Rands. Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford
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Fonte:https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/opiniao/2022/07/distribuindo-dinheiro-publico-as-vesperas-das-eleicoes.html
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