10 dezembro 2024

A obrigação estatal na coparticipação de planos de saúde: reflexões para possíveis desdobramentos

10.12.2024
Por Mateus Sampaio Aranha *  

Recentemente, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais inovou ao determinar, através de uma decisão precária¹, que o Estado de Minas Gerias arque com os custos da coparticipação cobrada por um plano de saúde a um beneficiário.

Trata-se da decisão proferida pela 3º Câmara Cível, que deferiu a tutela recursal pretendida, pelo beneficiário para determinar ao Estado de Minas Gerais o depósito judicial mensal da coparticipação devida pelo contratante do plano de saúde no importe de 20%, que representa o valor aproximado de R$ 5.980,13 (cinco mil, novecentos e oitenta reais e treze centavos).

De acordo com o Magistrado, a saúde é um direito constitucional de todo cidadão sendo responsabilidade solidária da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, não excluindo os beneficiários de plano de saúde. Além disso, o Desembargador do TJMG justificou a sua decisão afirmando que o beneficiário é hipossuficiente, não tendo condições financeiras em arcar com o valor cobrado pelo plano de saúde a título de coparticipação. A ver²:

Desta feita, quando a Constituição Federal estabelece que a saúde é um direito constitucional e dever do Estado (CF/1988, arts. 6º e 196), aqui entendido como União, Estados, Distrito Federal e Municípios, em razão da responsabilidade comum existente entre estes (art. 196 e 198, §1º), primando-se a presente decisão pela sua proteção, não exclui os beneficiários de Plano de Saúde.

Pensar desta maneira seria o mesmo que entender que aqueles que possuem plano de saúde não têm direito de ver resguardado o direito à saúde constitucionalmente garantido, conforme se constata in casu.

Ademais, se os entes federados são obrigados a garantir o direito à saúde de todos os cidadãos indistintamente não seria razoável entender que não deve subsidiar parte do tratamento médico que deve ser suportado por paciente hipossuficiente só pelo fato de ter plano de saúde, conforme já salientado

(...)

Com efeito, uma vez que os preceitos constitucionais traçam como objetivo da seguridade social, na qual se inclui a saúde, a universalidade de sua cobertura e de seu atendimento, garantindo-se a todos que dela necessitem o direito fundamental de obter do Poder Público ações e serviços que promovam a proteção e recuperação da saúde (CF/1988, art. 194 e parágrafo único c/c arts. 196 e 197), não há razão, pelo menos neste momento processual de indeferir o pleito do agravante de determinar que o Estado arque com os 20 % restante do tratamento mensal do agravante.

Ademais, restou demonstrada a imprescindibilidade do tratamento requerido, bem como a hipossuficiência financeira do agravante que recebe por mês R$ 3.626,90, conforme doc. 09-TJ.

Neste diapasão, presente prova satisfatória que demonstra a relevância dos fundamentos expendidos na ação cominatória ajuizada pela ora agravante, aliada ao fundado receio de dano à saúde de paciente hipossuficiente, torna-se imperioso o deferimento do pleito com relação ao Estado.

Com tais fundamentos, defiro a tutela recursal pretendida, para determinar ao Estado de Minas Gerais proceda o depósito judicial mensal da coparticipação do agravante no importe de 20%, que representa o valor aproximado de R$ 5.980,13 (cinco mil, novecentos e oitenta reais e treze centavos), por caixa de seu tratamento, para aquisição do medicamento prescrito em doc. 07-TJ, até decisão de mérito no presente recurso, sob pena de bloqueio de verbas públicas para o custeio do tratamento.(TJMG – Agravo de instrumento 1.0000.23.163758-8/001, 3ª Câmara Civel, Relator: ALBERTO DINIZ JUNIOR, DJ: 17/07/2023)

Em que pese a ação tratar de cobrança de coparticipação em razão do uso de medicamento oncológico, este não é o cerne da questão que se pretende discutir neste artigo. Tampouco se pretende discorrer sobre a motivação jurídica pelo qual a referida decisão está se embasando.  

O que, de fato, se pretende é questionar, sem a pretensão de esgotar as argumentações, sobre os possíveis desdobramentos que podem se abrir na Saúde Suplementar e Saúde Pública com a referida decisão.

DIREITO À SAÚDE, JUDICIALIZAÇÃO, ASSISTÊNCIA FINANCEIRA E DESDOBRAMENTOS:  

É inegável que os direitos sociais de todos os cidadãos estão previstos na Constituição Federal que assim dispõe:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Em relação a política social da saúde, a própria constituição estabelece a forma, as diretrizes e os termos. A ver:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: (Vide ADPF 672)

I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III - participação da comunidade.

Assim, o direito a saúde é de fato, conforme o entendimento da decisão analisada, um direito constitucionalmente previsto no ordenamento jurídico brasileiro.  

Contudo, tal direito, assim como qualquer outro, não é amplo e irrestrito³, devendo o Estado, também, à luz da constituição, criar políticas públicas em saúde, com bases orçamentárias e diretrizes legais para fornecer saúde à coletividade.

Este mesmo entendimento é aplicável para as empresas privadas ou cooperativas que atuam fornecendo planos de saúde aos cidadãos (art. 199 da CF), pois, a Saúde Suplementar, também, não possui uma obrigação ampla e irrestrita, devendo as operadoras seguir diretrizes, determinações legais e obrigações definidas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar. Tudo isso gerenciando, também, um orçamento igualmente limitado e finito.

O professor e doutor Daniel Wang, em seu artigo denominado Revisitando dados e argumentos no debate sobre judicialização da saúde, cita o exemplo da Lei 8.080/90 (conforme alterações da Lei 12.401/11), a qual fala sobre a assistência terapêutica e incorporação de tecnologia em saúde para concluir que o ordenamento jurídico estabelece processos, critérios e competências para a realização das escolhas na forma, onde e como será alocado os recursos financeiros destinos a promoção da saúde⁴.

Na Saúde Suplementar, podemos utilizar o exemplo da Lei 9656/98, que através do parágrafo 3º do art. 10-D, fixa critérios específicos que a ANS tem que seguir para decidir sobre a inclusão de um novo procedimento ao Rol de Procedimento e Eventos em Saúde Suplementar.

Diante deste contexto normativo, a União, Estados, Municípios e Operadoras de planos de saúde fazem políticas voltadas para a promoção da saúde de modo a atender a ampla gama de normas jurídicas existentes.  

Em se tratando de políticas públicas voltadas à promoção da saúde, o gasto público do Brasil com saúde representou, em 2019, 9,6% do PIB, o equivalente a R$ 711,4 bilhões, sendo o 7º país com maior despesa em relação ao PIB⁵.

Assim, não resta dúvida que proporcionalmente ao que se arrecada, o Brasil é um dos países que mais gasta/investe no mundo quando o assunto é saúde.

A saúde suplementar, também, investe altos valores para promover a saúde de seus beneficiários. Em 2022 investiu R$ 208,2 Bilhões⁶ em assistência.

Mesmo diante do alto gasto, não se pode desconsiderar o fenômeno da Judicialização da saúde no Brasil. Para o Ministro Luiz Roberto Barroso⁷, as decisões judiciais proferidas diante deste fenômeno acabam por ignorar as políticas públicas, desorganizar a gestão da saúde, permitir privilégios no acesso a saúde. Além disso, impede a alocação racional dos escassos recursos públicos, podendo acarretar à não realização de práticas de políticas sociais previstas na própria Constituição.  

Neste ponto, em que pese Barroso (2009) voltar suas críticas a judicialização na saúde pública, cumpre ressaltar que esse entendimento, também, é plenamente aplicável quando a análise é voltada para a Saúde Suplementar, pois, a judicialização em face do plano de saúde, também acarreta os mesmos problemas identificados e criticados por ele.

Inclusive, a existência dos impactos citados por Barroso (2009) é facilmente perceptíveis através de trechos do próprio Superior Tribunal de Justiça, citado por Wang (2021):  

Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida (...) ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo (...) que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: o respeito indeclinável à vida.” (Min. Celso de Mello, Pet 1246/96)

“eu não posso compreender que se articule a inexistência de lastro econômico-financeiro para se negar um tratamento à saúde a um cidadão” (Min. Marco Aurélio Mello, RE 368546/11)

"Estamos aqui para tornar efetivo aquilo que a Constituição nos garante. A dor tem pressa. Eu lido com o humano, eu não lido com o cofre" (Carmen Lúcia, 2016)

Para Wang (2021) “outra maneira de dizer que custos não importam e que o impacto econômico não é problema para juízes é tratar necessidades individuais, amparadas pelo direito à saúde, como trunfos contra a política de saúde”.

Mesmo diante do trunfo, citado por Wang (2021), ser voltado, até então, para o fornecimento de tratamento, medicamento e qualquer outra tecnologia emergente em saúde, a decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerias, ora analisada, obriga o Estado a suprir, também, com as obrigações financeiras assumidas pelo enfermo hipossuficiente.

Nota-se que a decisão do TJMG utiliza dos mesmos fundamentos, incluindo a hipossuficiência financeira do beneficiário, para obrigar o Ente Público a suprir a incapacidade financeira do beneficiário.  

Assim sendo, a nova jurisprudência criada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais faz pensarmos nos seguintes questionamentos:

i) Será que, diante desta jurisprudência, caberia uma extensão para que o Estado arque também, com as mensalidades cobradas pelo plano de saúde aos beneficiários hipossuficientes? Por que apenas a coparticipação teria essa obrigação Estatal?  

ii) O Estado terá que realocar seus recursos para criar uma política pública voltada ao custeio dos cidadãos, hipossuficientes, usuários de plano de saúde?

iii) Será que essa jurisprudência será utilizada, também, em desfavor das operadoras de planos de saúde para que essa, também, seja corresponsável e supra as necessidades financeiras dos seus beneficiários hipossuficientes?

iv) Será que, com base nesta jurisprudência, o plano de saúde pode chamar o Estado/Município/União na lide em que o beneficiário discute a legalidade ou valores da cobrança de coparticipação, para que se discuta a obrigação do ente público com este pagamento também neste tipo de processo?

v) Será que, com base nesta jurisprudência, em um processo judicial de cobrança feita pelo plano de saúde em desfavor de seu beneficiário inadimplente, o Exequente pode incluir o Estado no polo passivo da lide para se responsabilizar de forma subsidiária pelo cidadão.  

vi) Qual o verdadeiro limite obrigacional da União, Estados, Municípios e operadoras de planos de saúde quando o assunto é saúde?

Estes questionamentos devem ser feitos e respondidos pela União, Estados, Municípios e operadoras de planos de saúde, pois, a depender do julgamento final (trânsito em julgado) deste processo, tal precedente poderá abrir uma gama de possibilidades e responsabilidades aos mesmos.

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 O que não se mostra em caráter efetivo ou permanente, mas é feito, dado, concedido ou promovido em caráter transitório, revogável. (Acesso em 04/09/23 - https://www.cnmp.mp.br/portal/institucional/476-glossario/7850-precario#:~:text=O%20que%20n%C3%A3o%20se%20mostra,promovido%20em%20car%C3%A1ter%20transit%C3%B3rio%2C%20revog%C3%A1vel.)

² Tribunal de Justiça de Minas Gerais – Agravo de instrumento 1.0000.23.163758-8/001, 3ª Câmara Civel, Relator: ALBERTO DINIZ JUNIOR, DJ: 17/07/2023

³ “Neste sentido, a saúde como direito contempla tanto aspectos individuais, privilegiando a liberdade, quanto sociais, privilegiando a coletividade. Portanto, as determinações jurídicas a respeito de fechamento de estabelecimentos que ofereçam risco ao consumidor, criação de ambientes livres do fumo, fiscalização da ingestão de álcool ao volante, são limitações ao direito individual em favor do coletivo. De acordo com Bobbio (1992), a concorrência entre os direitos é um dos entraves na sua garantia; o reconhecimento do direito de alguns é o consequente suprimento do direito de outros” – Trecho retirado da obra Direito à saúde e integralidade: uma discussão sobre os desafios e caminhos para sua efetivação – Autores: Keila Brito-Silva, Adriana Falangola Benjamin Bezerra, Oswaldo Yoshimi Tanaka – Acesso dia 06/09/23 - https://www.scielo.br/j/icse/a/WC7GKD4py6Cq7cLdRvDZx3H/?format=pdf&lang=pt

⁴ Wang, D. W. L. (2021). REVISITANDO DADOS E ARGUMENTOS NO DEBATE SOBRE JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE. REI - REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, 7(2), 849–869. https://doi.org/10.21783/rei.v7i2.650

⁵ IBGE – Acesso em 05/09/2023 -site: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/33484-despesas-com-saude-em-2019-representam-9-6-do-pib#:~:text=Nos%20gastos%20do%20governo%2C%20a,%2448%2C5%20bilh%C3%B5es%20em%202019.

 Fonte ANS – Acesso: 08/09/23 - https://www.gov.br/ans/pt-br/assuntos/noticias/numeros-do-setor/ans-lanca-novo-boletim-sobre-planos-de-saude/PanoramaSaudeSuplementar01_julho2023.pdf

⁷ BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Revista Jurisprudência Mineira, v. 60, n. 188, p. 29-60, jan./mar. 2009. Acesso: 05/09/2023 – site: https://www.conjur.com.br/dl/estudobarroso.pdf

* Mateus Sampaio Aranha é presidente da Comissão de Saúde Suplementar da OAB/MG, pós-graduado em Processo Civil pela Puc Minas-MG, pós-graduado em Direito Processual pela Faculdade Milton Campos – MG, MBA em gestão estratégica de pessoas pela Fundação Getúlio Vargas – FGV e advogado da Unimed Federação Minas. de pessoas pela Fundação Getúlio Vargas – FGV e advogado da Unimed Federação Minas.

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Fonte: https://www.jurishealth.com.br/artigos/a-obrigacao-estatal-na-coparticipacao-de-planos-de-saude-reflexoes-para-possiveis-desdobramentos

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